«Para a Galiza, chegar tarde à
nacionalização do galego tem a vantagem de termos um leque de exemplos
bem sucedidos dos quais obter toda a informação, e instrumentos
necessários, começando por Portugal».
Há algum tempo vi e comprei numa loja de Braga o livro Cogito Ergo Sum – Dicionário Comentado de Expressões Latinas,
tradução do original francês de Orlando de Rudder (Edições
Texto&Grafia). Podendo escolher tantas outras sentenças em latim, o
autor ou o tradutor foi utilizar no título uma do século XVII.
A escolha faz-me lembrar uma contradição tradicional que talvez seja
um vício de raiz do ensino nacional, manifestado, de forma conspícua, no
bacharelato: Quanto se ensinava essa língua no ensino médio
restringia-se à gramática e autores clássicos, considerando a produção
escrita até ao século IV (atualmente costuma incluir-se os textos
produzidos até ao S. VI). Curiosamente, ao mesmo tempo estudava-se nas
aulas de filosofia o Discurso do Método de René Descartes, cujo original em francês foi preciso traduzir ao latim para a sua difusão.
É claro que a expansão da imprensa favoreceu o ensino e aprendizagem
do latim europeu e a criação de umas classes letradas nessa língua, que
partilhavam publicações e conhecimentos. A sua posição foi absolutamente
preponderante, estabelecendo uma relação multissecular de caráter
diglóssico, poderíamos dizer, em relação às outras línguas, chegando,
polo menos, até meados do século XVIII. Ora bem, visto de outra forma, a
relação entre as línguas vulgares, faladas, mas raramente escritas, e o
latim, não falado por ninguém como língua materna, mas ocupando todo o
espaço da escrita, poderia ser qualificada como uma aliança linguística
europeia. E com isto já temos uma forma de definir e explicar a Europa
cultural, o espaço europeu e mesmo do Ocidente. Sendo assim, caberia
perguntar-se pola função histórica dessa literatura latina e, de outro
ponto de vista mais funcional, polo seu papel cultural e político na
história europeia. Infelizmente disto quase ninguém costuma falar.
Uma primeira resposta e uma grande parte da bibliografia sobre este tema está acessível no livro de Lluís V. Aracil Do Latim às Línguas Nacionais- Introdução à História Social das Línguas Europeias,
publicado pola Associação de Amizade Galiza-Portugal em 2004,
atualmente distribuído pola Através Editora, e que tive a oportunidade
de editar junto do sociolinguista castelhonense Josep J. Conill. Até ao
momento é o único livro publicado deste autor na nossa língua.
A questão do esquecimento do papel do latim na história da Europa,
sujeito “elíptico” no relato das línguas nacionais, foi relacionado por
Aracil e outros autores com a pretensão de “imemorialização”, de
justificação da preponderância das línguas nacionais dentro dos seus
respetivos territórios. Conforme a esta interpretação, convém que a
situação atual seja percebida polos cidadãos não só como definitiva,
como também imemorial, recuada no tempo, de tal forma que o passado seja
interpretado à luz do statu quo presente.
Estuda-se a literatura medieval galaico-portuguesa, mas esquece-se
frequentemente dizer que nessa altura e durante os séculos posteriores o
galego ou português conviveu com o latim, e que esta era a língua
utilizada para as “cousas sérias”. Também para os ofícios religiosos,
excetuando as homilias. Quando lemos os textos de M. Leonor Carvalhão
Buescu sobre Fernão de Oliveira, João de Barros e Duarte Nunes de Lião,
devemos ter ao lado os estudos sobre o renascimento e o humanismo
português, como os de António José Saraiva, para termos uma perspetiva
clara do contexto e fontes em que beberam. Quando se cita Luís de Camões
e os Lusíadas convém ter presentes os estudos de Américo da Costa
Ramalho. Porque alguns passam sem reparar especialmente em que aquela
operação de promoção das chamadas “línguas vulgares” consistiu, em
grande medida, num aproveitamento, ou apropriação, ou transferência de
tecnologia, do latim. Caraterística intrínseca das línguas nacionais?
Provavelmente.
Aracil escrevera em 1984 o artigo “Llengua nacional: una crisi sense
crítica?” que espero ver publicado em português. Esse texto e o livro Do latim às línguas nacionais,
motivo deste artigo, pretende ajudar a tomar um certo distanciamento,
um desapego da própria língua e do discurso que a justifica, através de
um ponto de vista observacional de terceira ordem, em palavras de Josep
Conill. A Língua Nacional, com maiúsculas, é um modelo gerado na Europa.
Tornou-se dominante de tal modo que parece impossível imaginar outro
para as comunidades linguísticas. O seu desenvolvimento acarreta não só
satisfações, também uma problemática na convivência entre línguas, e
mesmo dentro da própria comunidade de falantes, a que é preciso dar
algum tipo de saída.
Para a Galiza, chegar tarde à nacionalização do galego tem a vantagem
de termos um leque de exemplos bem sucedidos dos quais obter toda a
informação, e instrumentos necessários, começando por Portugal. Podemos
fazer nossos os clássicos portugueses, como dizia Manuel Rodrigues Lapa.
Apanhar instrumentos bem sucedidos, andar por trilhos já andados e
incorporar-nos à comunidade linguística da lusofonia, espaço em
construção em que os galegos temos não só direito de participação, como
especialmente o dever de contribuir. Por outra parte devemos sentir-nos
advertidos, através das experiências prévias de outros países, da
consequências mais negativas do modelo nacionalizador, como a pretensão
de uniformidade linguística dos cidadãos.
A vantagem de conhecer minimamente a história das línguas europeias é
ter um ponto de vista observacional mais amplo que permite ultrapassar o
nível da experiência pessoal. Equivale a ter um esquema do seu
funcionamento, do mecanismo por que umas línguas vulgares se converteram
em nacionais, enquanto outras não acederam a esse caminho. Serve,
naturalmente, para entender como e por que o galego chegou à situação
atual.
Estudar e entender a língua como facto social implica termos
presentes todos os fatores em jogo. No caso do português da Galiza
falado na atualidade, apresentá-lo no âmbito científico ou na sociedade
como se não tivesse recebido a influência secular do castelhano ou, em
expressão do isolacionismo linguístico, usar a hipótese da “deriva
natural” para explicar os castelhanismos na nossa língua falada, nada
tem a ver com paradigmas linguísticos, escolhas metodológicas ou teorias
científicas.
A literatura associada ao processo nacionalizador oferece textos de
utilidade quase universal. No amplo e documentado estudo sobre a obra de
Aracil, que Conill incluiu como epílogo do livro Do latim às línguas nacionais,
encontramos algumas referências preciosas para entender a ideologia
linguística do regionalismo na Espanha. Uma delas é o livro L’Anti Nature de Climent Rosset (1973), do que Conill cita o naturalismo conservador ou mística da falsificação. Vejamos a citação:
Por palavras de Rosset, poderíamos caracterizá-lo asssim:
a peregrina mas tenaz ideia, conforme à qual o sabor (ou a natureza) das
coisas foi dalgum modo dado para sempre, e que é perdido progressivamente
no curso da história: ao princípio era a natureza; depois veio o artifício, que
tudo falseou. A ideia de modificação acha-se aqui emparentada com a ideia
da falsificação que significa, por uma parte, que havia uma instância original
de verdade que é pervertida; por outra, que as transformações se limitam a
degradações, quer dizer, que carecem de função realmente compensatória
(o que nasce não substitui o que morreu, o sabor da espécie desaparecida
não está compensado pelo sabor da espécie nova). Mística da autenticidade
e mística do passado (…) o que quer que seja puramente natural pertence
ao passado; o presente significa a aparição do artifício e o futuro anuncia a
aparição inevitável dos restos da natureza, contudo respeitados pelo artifício
do presente (Rosset, 1973: 299-300).
Diria que este parágrafo retrata um discurso frequentemente visto,
aqui e acolá, ontem e hoje, sobre o galego e outras “línguas regionais”.
Será mais importante a essência que a sobrevivência?
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