“Mas, se a identificação de classe dirigente e elite cultural nunca se deu nem se dá, para quê o pretender estabelecê-la?”.
A frase foi dita pelo matemático português Bento de Jesus Caraça numa conferência realizada em 25 de maio de 1933 em Lisboa. A conferência, titulada “A cultura integral do indivíduo, tema central do nosso tempo”, é uma firme defesa da democratização do conhecimento como passo essencial para a plena realização do cada indivíduo. Uma das grandes empresas de Bento Caraça enquanto professor foi a criação, em 1919, da Universidade Popular, instituição de ensino superior dirigida à classe operária. A Universidade Popular, como muitas outras empresas semelhantes um pouco por toda a Europa ocidental do período de entre guerras, visava desfazer a oposição entre cultura de elites e cultura popular. Bento resumia este empenho com a frase “despertar a alma coletiva das massas”. Algo não muito diferente do “desperta do teu sono” pondaliano. A Universidade Popular funcionou até 1933 numa das salas da Padaria do Povo, fábrica fundada no bairro lisboeta de Campo de Ourique em 1907 para fornecer de pão mais barato a várias das freguesias mais pobres de Lisboa. É neste local, hoje um espaço a meias restaurante e centro cultural, que assistimos à primeira projeção pública do documentário “Porta para o exterior”, de Sabela Fernández e José Ramóm Pichel, em 25 de fevereiro passado. Porque também em Lisboa, e em qualquer lugar do mundo em que alguém reinvente o património cultural galego, se faz cultura galega. E sociedade. Um local ideal para falar do reintegracionismo galego, que se num auto alegórico barroco se representasse, poderia ter como personagens o Conhecimento, a Elite e a Massa. Já agora, o professor Bento de Jesus Caraça, exemplo de divulgação da cultura científica em Portugal, acabou a sua curta vida perseguido pelo regime salazarista e afastado da sua cátedra.
O documentário é um valioso testemunho do momento atual do
reintegracionismo, que de ser uma discussão de elites académicas nas
últimas décadas do século XX está a converter-se de maneira progressiva
em um movimento social. Durante uma hora ouvimos depoimentos de pessoas
que fazem da opção internacionalista da língua uma “maneira de estarmos
no mundo”, como diz uma das entrevistadas. A emergência de novas redes
de comunicação teve um impacto claro na democratização do conhecimento
e, no caso da sociedade galega, um maior acesso ao padrão escrito do
português. Ele nunca esteve completamente ausente da sociedade galega.
Dou como exemplo, o primeiro contacto que eu tive com o português
escrito, que foi nas revistas de bordado portuguesas que a minha mãe
comprava na livraria “La Poesía” da rua de Santo André da Crunha. Creio,
porém, que ainda não é tema na Galiza o facto de que as línguas valem
também como instrumentos de acesso a comunidades de conhecimento. Foi
uma perceção que me ficou assente nestes anos dos contínuos diálogos com
africanos, que têm na língua das antigas metrópoles o melhor
instrumento para o acesso ao conhecimento científico. Na prática, a
opção isolacionista obrigou à sociedade galega, universalmente
escolarizada, a utilizar o castelhano como língua de conhecimento e a
criar o padrão científico galego com formas castelhanas ou híbridas.
Outra das grandes mudanças do reintegracionismo na atualidade é o facto de precisarmos o contacto com o português para recuperarmos “a fala dos avós que temos mortos”, no verso de Celso Emílio Ferreiro, as vozes patrimoniais da língua. Nunca como agora fez sentido aquela frase de Ernesto Guerra da Cal de que o português é o “lar perdido e reencontrado” para os galegos. O argumento da autoridade popular, a escola dos lavradores, como a chamava Rosalia, ou o “sermo humilis” nalgum escrito de Filgueira Valverde sobre Rosalia, ficou desfeito nas últimas décadas pela evidente deformação obrigatória da língua. Formas como a denominação patrimonial dos dias da semana estavam vivas nos inícios do século XX e já só sobrevivem dialetalmente. Cada vez que vou à Galiza não deixo de surpreender-me com o facto de que palavras que na minha infância eram desconhecidas na sua forma castelhana, como o nome dos peixes, hoje já nem as ouço na forma galega. No seu conto “Ignotus” Murguia evoca um episódio daquele que ficou na memória coletiva dos galegos como o “ano da fame”, 1853. O povo das montanhas baixava às vilas e cidades da Galiza e com eles vinham vozes desconhecidas que nunca tinham sido registadas. Murguia exemplifica neste episódio histórico o génio popular. Mas nós, afortunadamente, já não somos o povo da fame, nem massa popular inculta e de génio espontáneo, nem a fala das aldeias serve hoje para tirar másters de língua. Somos, ainda, galegos, enquanto assim queiramos ser e para aquilo que nós queiramos ser.
A porta também abre para o interior. Um dos testemunhos que mais apreciei no documentário foi a pergunta de um moço do Porto: porquê nunca mais soubemos dos galegos? Porquê os galegos são uma referência cultural e histórica reduzida, no melhor dos casos, à Idade Média portuguesa? Em grande medida o nome da Galiza está encerrado na história das origens de Portugal. Na minha vivência diária com a sociedade que me acolheu, faço questão de falar da história contemporânea dos galegos. Até porque tudo o que acontece na Galiza também acontece em Portugal. Também este povo pode representar esse auto alegórico de conhecimento, elites e massas. Para além das histórias sociais paralelas, nós também fazemos parte da história dos outros, em especial da história de Portugal, e não só por uma questão de origem. Nesta dita lusofonia, como na dita humanidade, todos temos peças diferentes e, em ocasiões, peças perdidas de outras culturas. Como o manuscrito encontrado na Irlanda que conta a história do farol da Crunha. Aos galegos calha-nos um muito particular ângulo de visão sobre este mundo lusófono, nem que seja porque nós nunca fizemos parte do império português. Mas há mais, o facto de sermos a arca da memória mais antiga da língua, como a que está nos nomes de lugares, de sermos intérpretes de referentes culturais comuns a todo o mundo lusófono cuja origem só é transparente para nós, como a origem do apelido Andrade, da primeira cidade que teve Santiago como nome ou da história que contam as vieiras. O ensaio de Paz Andrade sobre Guimarães Rosa é um bom exemplo do olhar galego sobre a cultura que é comum a todos os que duma maneira ou outra têm contacto com o português neste mundo feito pelos instáveis caminhos do mar. A memória não é resgate do passado, é descoberta de continuidade, segundo aquela máxima de que a natureza não dá saltos. Gostava, é um desejo pessoal, menos discurso narcísico sobre identidade galega na nossa vida cultural. Identidade temos nós avondo. Falta-nos é dar-nos, “deixar de ser para ser noutro”, como no verso de Paz Andrade. Todo discurso amoroso passa pelo desejo de um outro e quem ama vive sempre em corpo alheio, como diz a tragédia grega. Esse desejo dos outros, mais uma roda da nossa contínua cobiça dos longes, é uma das esperanças que vejo no momento atual do reintegracionismo.
O encontro com os outros está a dar frutos no mundo artístico, com músicos, poetas e escritores. Falta ainda vontade de querer articular ação social e política com quem partilhamos língua. Eu tampouco quero arredar as minhas palavras de todos os que sofrem neste mundo. A grafia internacional da língua que aprendi da minha avó é um instrumento valiosíssimo para transmitir os valores democráticos nos que ela me formou. Sinto-me herdeira e legítima intérprete da funda veia democrática de vários dos referentes de pensamento que me inspiram na história do galeguismo. Ramóm Suárez Picalho, emigrante, formado politicamente no sindicalismo argentino, deputado em cortes da 2ª República espanhola, vindica nos seus escritos a ligação dos seus ideiais às raízes culturais mais ancestrais da Galiza. Personagens como Suárez Picalho são exemplo de como a cultura e a sociedade galega nos dão chaves únicas para desfazer essa forte dicotomia da modernidade entre antigos e modernos. Cá e lá vejo testemunhos de reintegracionistas que fazem novas leituras do popular. Creio que aos galegos nos foi dada essa “imortal ferida de alterar a história dos vivos e dos mortos”, como diz o verso de Diaz Castro. Essa Galiza em contínuo inacabamento, como a epopeia que Pondal nunca conseguiu escrever e que deixou espalhada em centenas de cartões. Assim vejo eu a história do povo galego. Nada humano nos é alheio. Essa é, sempre será, o plano de ação mais revolucionário da história da humanidade.
Outra das grandes mudanças do reintegracionismo na atualidade é o facto de precisarmos o contacto com o português para recuperarmos “a fala dos avós que temos mortos”, no verso de Celso Emílio Ferreiro, as vozes patrimoniais da língua. Nunca como agora fez sentido aquela frase de Ernesto Guerra da Cal de que o português é o “lar perdido e reencontrado” para os galegos. O argumento da autoridade popular, a escola dos lavradores, como a chamava Rosalia, ou o “sermo humilis” nalgum escrito de Filgueira Valverde sobre Rosalia, ficou desfeito nas últimas décadas pela evidente deformação obrigatória da língua. Formas como a denominação patrimonial dos dias da semana estavam vivas nos inícios do século XX e já só sobrevivem dialetalmente. Cada vez que vou à Galiza não deixo de surpreender-me com o facto de que palavras que na minha infância eram desconhecidas na sua forma castelhana, como o nome dos peixes, hoje já nem as ouço na forma galega. No seu conto “Ignotus” Murguia evoca um episódio daquele que ficou na memória coletiva dos galegos como o “ano da fame”, 1853. O povo das montanhas baixava às vilas e cidades da Galiza e com eles vinham vozes desconhecidas que nunca tinham sido registadas. Murguia exemplifica neste episódio histórico o génio popular. Mas nós, afortunadamente, já não somos o povo da fame, nem massa popular inculta e de génio espontáneo, nem a fala das aldeias serve hoje para tirar másters de língua. Somos, ainda, galegos, enquanto assim queiramos ser e para aquilo que nós queiramos ser.
A porta também abre para o interior. Um dos testemunhos que mais apreciei no documentário foi a pergunta de um moço do Porto: porquê nunca mais soubemos dos galegos? Porquê os galegos são uma referência cultural e histórica reduzida, no melhor dos casos, à Idade Média portuguesa? Em grande medida o nome da Galiza está encerrado na história das origens de Portugal. Na minha vivência diária com a sociedade que me acolheu, faço questão de falar da história contemporânea dos galegos. Até porque tudo o que acontece na Galiza também acontece em Portugal. Também este povo pode representar esse auto alegórico de conhecimento, elites e massas. Para além das histórias sociais paralelas, nós também fazemos parte da história dos outros, em especial da história de Portugal, e não só por uma questão de origem. Nesta dita lusofonia, como na dita humanidade, todos temos peças diferentes e, em ocasiões, peças perdidas de outras culturas. Como o manuscrito encontrado na Irlanda que conta a história do farol da Crunha. Aos galegos calha-nos um muito particular ângulo de visão sobre este mundo lusófono, nem que seja porque nós nunca fizemos parte do império português. Mas há mais, o facto de sermos a arca da memória mais antiga da língua, como a que está nos nomes de lugares, de sermos intérpretes de referentes culturais comuns a todo o mundo lusófono cuja origem só é transparente para nós, como a origem do apelido Andrade, da primeira cidade que teve Santiago como nome ou da história que contam as vieiras. O ensaio de Paz Andrade sobre Guimarães Rosa é um bom exemplo do olhar galego sobre a cultura que é comum a todos os que duma maneira ou outra têm contacto com o português neste mundo feito pelos instáveis caminhos do mar. A memória não é resgate do passado, é descoberta de continuidade, segundo aquela máxima de que a natureza não dá saltos. Gostava, é um desejo pessoal, menos discurso narcísico sobre identidade galega na nossa vida cultural. Identidade temos nós avondo. Falta-nos é dar-nos, “deixar de ser para ser noutro”, como no verso de Paz Andrade. Todo discurso amoroso passa pelo desejo de um outro e quem ama vive sempre em corpo alheio, como diz a tragédia grega. Esse desejo dos outros, mais uma roda da nossa contínua cobiça dos longes, é uma das esperanças que vejo no momento atual do reintegracionismo.
O encontro com os outros está a dar frutos no mundo artístico, com músicos, poetas e escritores. Falta ainda vontade de querer articular ação social e política com quem partilhamos língua. Eu tampouco quero arredar as minhas palavras de todos os que sofrem neste mundo. A grafia internacional da língua que aprendi da minha avó é um instrumento valiosíssimo para transmitir os valores democráticos nos que ela me formou. Sinto-me herdeira e legítima intérprete da funda veia democrática de vários dos referentes de pensamento que me inspiram na história do galeguismo. Ramóm Suárez Picalho, emigrante, formado politicamente no sindicalismo argentino, deputado em cortes da 2ª República espanhola, vindica nos seus escritos a ligação dos seus ideiais às raízes culturais mais ancestrais da Galiza. Personagens como Suárez Picalho são exemplo de como a cultura e a sociedade galega nos dão chaves únicas para desfazer essa forte dicotomia da modernidade entre antigos e modernos. Cá e lá vejo testemunhos de reintegracionistas que fazem novas leituras do popular. Creio que aos galegos nos foi dada essa “imortal ferida de alterar a história dos vivos e dos mortos”, como diz o verso de Diaz Castro. Essa Galiza em contínuo inacabamento, como a epopeia que Pondal nunca conseguiu escrever e que deixou espalhada em centenas de cartões. Assim vejo eu a história do povo galego. Nada humano nos é alheio. Essa é, sempre será, o plano de ação mais revolucionário da história da humanidade.
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