luns, 27 de abril de 2015

Galícia, berço das primeiras cantigas em português

Livro investiga origens da literatura de língua portuguesa na cidade de Santiago de Compostela, entre os séculos XII e XIV.

O profano e o sagrado em um mesmo destino: assim condensa o poeta Airas Nunes (1230-1289) numa cantiga que exalta a alegria de uma donzela que aguarda duas visitas em Santiago de Compostela. Na capital galega haverá espaço para corpo e alma: ver, finalmente, o rei Dom Sancho IV e encontrar o “amigo”, chave que identifica o amado na lírica galego-portuguesa. A centralidade da cidade espanhola na mais antiga expressão literária da língua portuguesa é ressaltada no recém-lançado “O caminho poético de Santiago: lírica galego-portuguesa” (Cosac Naify), da brasileira Yara Frateschi Vieira e dos galegos Maria Isabel Morán Cabanas e José António Souto Cabo.
A imagem da imponente catedral de Santiago é o ícone do centro urbano mais desenvolvido da época, onde surgiram os primeiros versos dessa literatura cultivada nos reinos centro-ocidentais da Península Ibérica (Galícia, Portugal, Leão e Castela) entre os séculos XII e XIV. É a partir do período medieval que a catedral ganha importância não só religiosa mas como instituição econômica e patrimônio cultural que começa a atrair imigrantes. Burgueses que formariam a rede comercial da cidade e que junto aos religiosos, quase sempre da alta nobreza, se consagrariam literatos dedicados a textos de entretenimento cantados nos saraus literários da época.
Variante da poesia trovadoresca em voga principalmente na França da época, a versão galego-portuguesa se centra na expressão do que seria conhecido como o amor cortês. Classicamente dividida em três grandes gêneros, dois são dirigidos à expressão desse afeto, seja ele por uma mulher, nas cantigas de amor — quase sempre uma relação impossível — seja por um homem, nas cantigas de amigo. O terceiro gênero, as cantigas de escárnio e maldizer, também marcam presença, versos satíricos repletos de burlas muitas vezes de caráter sexual. Como no primeiro texto do compêndio, obscenos versos de Afonso Eanes do Cotom que prometem redenção divina a uma experimentada senhora desde que ela eduque o recém-casado na complexa arte de fornicar bem: “E se eu ensinado vou/ de vós, senhor, deste mester/ de foder e foder souber/ per vós, que me Deus aparou,/ cada que per foder, direi/ Pater Noster e enmentarei/ a alma de quen m’ ensinou.”
PRIMEIROS PASSOS DA LÍRICA GALEGO-PORTUGUESA
As cantigas de amor e de amigo, no entanto, são maioria na coletânea. Uma introdução ajuda o leitor a entender o momento literário da época e cada autor é acompanhado por uma ficha biobibliográfica. O livro traz comentários crítico-interpretativos para cada cantiga, um glossário de termos específicos, um mapa do que hoje é conhecido como Zona Vella, o início da povoação da cidade e onde se podem ver os topônimos referidos nos textos. Traz ainda dois fac-símiles, minúsculas letras góticas acompanhadas de notação musical para indicar a melodia das estrofes. Os poemas, cantigas ou jograis, conservados em pergaminhos conhecidos como Cancioneiros, são compostos por 29 autores que nasceram, estiveram ou se apaixonaram em Compostela.
Alguns deles se relacionam com Santiago através da biografia documental, como Bernal de Bonaval, que traz no nome o topônimo mais vezes citado em suas cantigas, a Igreja de Bonaval, numa área da cidade que hoje abriga um precioso conjunto de museus e parque. Outros passaram pela cidade em peregrinações, como João Peres de Aboim, que começa um dos poemas fazendo referência ao Caminho Francês, o mais tradicional itinerário de peregrinação até Compostela, cerca de 800 km que cortam todo o norte da Espanha desde os Pirineus franceses. Aboim, português do Minho, compõe uma pastorela, um encontro entre um pastor e sua amada num locus amoenus, que traz uma inovação: a inserção de refrãos populares num gênero predominantemente culto, inspiração provavelmente derivada de sua longa estadia francesa na corte do rei Afonso III .
— A grande novidade do livro está na parte final que traz trovadores e textos em diálogos. Nesses documentos a intertextualidade é muito clara, são provas de que havia uma intensa troca literária nesse momento — diz José António Souto Cabo.
Na leitura, é possível perceber como se movia essa espécie de “rede social” medieval, cujos rastros são recuperados por textos como as “tenções”, em estrutura de diálogos, onde os poetas citam outros autores, repetem versos ou melodias e praticam um jogo de referências. A leitura, que pode ser a priori um desafio ao leigo, ganha novas camadas ao ser contrastada com os comentários crítico-interpretativos.

— O livro pretende dar a ideia mais clara e correta possível de como foram os primeiros passos da lírica galego-portuguesa — explica Yara Frateschi Vieira. — Os textos são apresentados como objetos autônomos e completos para a primeira leitura (sem a muleta da tradução ou da atualização), uma aposta na sua possibilidade de compreensão.
A memória desse passado em comum ganha força na Galícia, onde diversos grupos culturais ressaltam a proximidade entre o galego e o português, seja como línguas irmãs ou variações da mesma língua nascida na Galícia do século XII. O desejo de entendimento e de fazer parte da comunidade lusófona e seus quase 250 milhões de falantes motivou a aprovação recente de uma lei que inclui o ensino do português como língua “estrangeira” opcional nas escolas galegas. A aproximação é vista como maneira de defender e renovar o galego, que muitos consideram tomado por castelhanismos, e frear a queda dos falantes habituais do idioma. E conta com um embaixador mineiro: Luiz Ruffato, presença frequente em Compostela, será homenageado em maio com o título de “Escritor Galego Universal 2015”.
Vivian Rangel é jornalista e doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade de Santiago de Compostela



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