Não podem representar-se a si próprios, devem ser representados. Karl Marx
Oriente é uma carreira. Benjamin Disraeli
O historiador palestiniano Edward W. Said abre o seu Orientalismo
com estas duas citações que resumem a sua tese: os povos chamados
orientais – como os povos camponeses europeus, que são a quem faz
referencia a cita de Marx – têm denegados a capacidade e o direito de
auto-representar-se, de maneira que são as elites letradas ocidentais,
mas nem só, as que as representam, cirando imagens estereotipadas
coloniais que respondem aos seus próprios interesses. Assim, sob a
aparência de descrever, constroe-se a identidade desses povos
despossuídos, encerrando-os nos estereótipos.
Antom Santos
desenvolve o conceito de “campesinismo” a propósito das lutas políticas
agrárias na Galiza “Moderna” por volta da apropriação e elaboração da
imagem do campesinado, desputada por setores atagónicos[1]. As classes
labregas, consideradas o cerne do país por uns e por outros,
representavam-nas, encarnando os valores políticos que interessavam às
elites correspondentes: para a burguesia um povo pacífico em
contraposição às rebeldes classes operárias; para o catolicismo os bons
cristãos apegados às tradições; para o galeguismo, o povo an sich depositário das essências nacionais.
Alargando o conceito de campesinismo
podemos tentar um “galeguismo” entendido como um orientalismo, e que
provisionalmente se poderia definir como o conjunto de estratégias
narrativas que umas elites letradas, foráneas ou galegas, mobilizam para
representar “o povo galego” atendendo a diferentes intenções políticas,
criando estereótipos que rematam (auto)identificando o país.
Acoutando ainda mais, este orientalismo
galaico emerge especialmente, como contra-discurso e como
contra-planificação cultural, cada vez que o galeguismo político,
soberanista, cobra força e aparece como uma ameaça. Um destes momentos
de emergência do “galeguismo” – quiçá fosse melhor chamá-lo
“galleguismo” – como contra-discurso dá-se perante o Rexurdimento.
Galleguismo como Contra-Rexurdimento
Há que imaginar a cena para valorizar
todo o seu significado: no jardim do paço de Meirás uma intelectual
aristocrata, deitada à sombra, reflete sobre poesia olhando para um moço
que, na leira, sob um sol abrasador, tira da junta de bois.
Esse peculiar modo de estar no mundo que
Bourdieu chama o ponto de vista escolástico, relação que permite
interpretá-lo e não só padecê-lo ou desfrutá-lo, aparece aqui sob uma
brutal distância: jardim/leira, aristocrata/labrego, descanso/trabalho,
letrada/analfabeto, espanhol-falante/galego-falante… A intelectual é a
grande Dona Emilia Pardo Bazán, e a poesia sobre a que reflete a de
Valentin Lamas Carvajal, responsável do emblemático O Tio Marcos da Portela, e militante agrarista.
O texto que redige Dona Emília nesse momento é o paradigma deste galleguismo que se apropria da linguagem galeguista para desativá-la politicamente, encauzando-o sempre no “regionalismo bien entendido” e a manutenção do statu quo. As suas palavras explicitam um programa:
Este poeta del
terruño, para satisfacerme del todo —á aquella hora en que yo me
despojaba de refinamientos y sutilezas literarias y sólo quería oir el
cántico de las cosas, la vaga sinfonía del suelo nativo— había de ser
principalmente muy quejumbroso y triste, aunque sin amarguras ni
rebeliones: había de exhalar un lamento resignado, murmurándolo sin
hinchazones de hipérbole, con la paciente lentitud del buey que avanza
amarrado al yugo; había de ser un alma crédula y supersticiosa, atenta á
las hondas voces del pasado; y al mismo tiempo no le habían de faltar
sus asomos de filosofía pesimista y desconsolada, sus ráfagas de
escepticismo instintivo y aun de dolor terco, como el de la bestia
herida por el aguijón. En particular le pedía yo á mi poeta soñado, que
sus versos no se diferenciasen mucho de la prosa en que hablaría
siempre. Transigía con ía rima, pero no con la lima; no con esos adornos
marchitos, tomados de Antologías y de Autores clásicos, galas que
huelen á alcanfor como la ropa guardada en los armarios largo tiempo.
No, por amor de Dios. ¡Dénme un cerebro infantil, primitivo, un cerebro
labriego, un alma en contacto con aquella tierra que tan fecundas
emanaciones lanza de sus entrañas siempre vírgenes! [2]
Ainda, tão magistral exemplo de orientalismo será completado com a feminização do bon sauvage, nessa lógica sexual que tão bem descreveu Helena Miguélez-Carballeira, deixando bem claro que se espera dos colonizados:
[…] el alma que veo
en sus versos es un alma femenil, resignada y saudosa, por consiguiente
adecuada á maravilla para comprender á nuestros campesinos y expresar
sus íntimas querellas. Él nos dirá, sin ahuecar la voz, con el mismo
acento monótono con que una vieja labriega refiere como le lleva-ron el
hijo y murió por allá, las cuitas de la pobreza, que nos conmueven de
piedad, por lo mismo que van narradas así, como males diarios,
dolorosos, pero inevitables y eternos. [3]
Este texto e outros de temática parecida foram recolhidos em 1888 num volume intitulado De mi tierra,
onde vai respostando à ameaça separatista do Rexurdimento ponto por
ponto, com especial ênfase em previr a emergência do galego como língua
nacional, não indo mais lá de “nuestro parnasillo regional”. A razão
profunda deste livro explicita-a quando recorda um encontro em Lisboa
com Teófilo Braga “repito aquí lo que entonces dije: que no hay nacionalidades peninsulares,
ni siquiera Dios sueñe en haberlas, ni permita, si llega este caso
inverosimil, que lo vean mis ojos” [4]. Mas o interessante deste
contra-discurso é que o fai apropriando-se de muitos dos lugares-comuns
do regionalismo: afinidade com Portugal [5], sentimento de aldraje polo
maltrato com o que foi paga a lealdade galega[6], acusação às elites
galegas – consideradas matriz das espanholas – de desleixo com a
própria Terra[7], desprezo de Castela e defesa da Galiza como cabeça da
civilização marítima junto com Catalunha e País Basco[8], e mesmo uma
descrição de Corunha como utopia habermasiana. Outras passagens do livro
contêm imagens espléndidas dessa relação de Orientalismo que a
escritora mantivo com a rurália galega, como essa expedição de notáveis
que partindo do balneário de Mondariz – “el Vichy gallego” – com duas
aldeãs de porteadoras, chegam até o castelo de Sobroso, em cuja
torre de homenagem içam a bandeira espanhola; sempre guiados por um
indígena a quem olham com a desconfiança do colonizador: “¿Es candor ó
malicia lo que brilla en el fondo de sus pupilas claras, cuando, después
de referir una estraña conseja, inclina la cabeza y añade
sentenciosamente – Créanme, que es cierto -. Yo no lo sé: el alma del
pueblo será siempre una esfinge.” [9]
Temos a sensação, lendo Pardo Bazán, de
estar a ler literatura britânica sobre a Índia. Talvez estivesse
predestinada para ser a grande pluma do orientalismo galego quem se
iniciou na literatura, aos 9 anos, dedicando umas quintilhas às tropas vencedoras na terra dos mouros.
Ningún comentario:
Publicar un comentario